Espancada por anos pelo marido, capelinhense consegue vitória inédita na Justiça

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noticias de capelinha
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Ela havia assinado um acordo de separação que favorecia o agressor, e conseguiu a anulação judicial. Ele recorreu.

Estamos no Agosto Lilás, mês que celebra o combate a todo o tipo de violência contra a mulher: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. O GAZETA DOS VALES preparou uma série de ações neste sentido, incluindo matérias, podcasts e outras divulgações relativas ao tema.

Essa é uma história chocante, que causa revolta, asco e tristeza. Mas, também é uma história de esperança e renascimento, e que pode ajudar muitas mulheres a reagirem contra várias formas de violência, e ainda ensinar a “usar a Justiça para vencer a batalha contra o agressor”.

O ano era 2008, e Giselle Sampaio pensou ter encontrado o seu príncipe encantado: um homem gentil, carinhoso e de um sorriso contagiante. Casou-se e, pouco tempo depois, começou o seu martírio. Quando iam sair, ela não podia usar o cabelo solto, nem batom, nem se arrumar, pois ouvia do companheiro frases como “mulher minha não sai assim” e “isso é coisa de mulher que quer se mostrar para outros homens”. Dias depois, foi pior: vieram as pancadas, surras na rua de rolar no chão e diversas outras humilhações”.

Mas, quando passava a “ira”, o marido ficava mansinho, pedia desculpas, dizia que nunca mais isso iria ocorrer. Foi assim até que ela decidiu: “Basta, não quero passar por isso novamente”, e foi morar com sua avó. “Todo arrependido”, ele insistiu, prometeu mudar e eles retomaram o relacionamento. Foi quando Giselle percebeu que estava grávida. Não foi programado, mas, claro, ela ficou feliz ao saber que seria mãe. Porém, a alegria virou tristeza ainda durante a gravidez: violência psicológica com xingamentos, gritos, palavras de baixo calão, e outras situações que em nada lembram as atitudes de um futuro pai. Mesmo no dia em que a filha nasceu, Giselle não teve trégua, ouviu xingos até mesmo na frente de familiares do companheiro.

TUDO VAI MUDAR

Em meio a este cenário, mas ainda esperançosa que as coisas pudessem vir a ser diferentes, Giselle montou uma empresa com o marido, e ela se dividia entre os “afazeres de mãe” e o trabalho. Mas, com o passar dos dias, tudo era motivo para ele bater nela: Giselle apanhava frequentemente, eram socos, esganaduras, empurrões… E, no outro dia, o próprio agressor ia à farmácia comprar um produto para disfarçar os hematomas.

Em meio a esse caos, Giselle descobriu o autismo da sua filha, à época com dois anos, e toda semana levava a criança para tratamento em Diamantina, situação que durou seis anos. E então, mais um choque: outra gravidez inesperada. Desespero total, desesperança, medo de colocar no mundo mais uma criança para sofrer: sem conseguir mais viver apanhando, ela tentou o suicídio.

Giselle ficou viva, mas entrou numa depressão profunda, foi diagnostica com crise de pânico e precisou dos serviços do CAPS (Centro de Apoio Psicossocial). Aí veio a pandemia, e aconteceu com ela o que ocorreu com a maioria das mulheres brasileiras e do mundo que já sofriam violência doméstica: o martírio dobrou, triplicou. Ela apanhou, teve o dedo quebrado, recebeu ameaças de morte, vivia toda machucada e cheia de hematomas. E o pior: os filhos passaram a ver e a conviver com isso.

Um dia, no sítio da família, o marido estava fazendo uma cerca, e gritou pedindo que Giselle lhe buscasse uma ferramenta. Ocupada, e cuidando do filho menor, ela pediu que ele mesmo pegasse. Ah, pra quê? O agressor pediu a uma familiar que segurasse a criança para ele bater em Giselle. E tome pancada, ela chegou a bater a cabeça no chão. E a familiar do agressor, uma mulher, se viu sem poder agir.

VOCÊ NÃO É NADA SEM MIM

Ainda no sítio, uma agressão se tornou “uma das piores”. Devido ao quadro de depressão, Giselle tomava remédio controlado para dormir. O quarto da casa do sítio era pequeno, e estava chovendo muito, por isso o marido tentou acordá-la para que, juntos, pudessem mudar a cama de lugar. Ainda sonolenta, Giselle não entendeu direito, e levou um soco bem no meio do rosto, e apanhou sem nem mesmo saber o motivo. Ela chorou a noite toda, e pensou: “Preciso arrumar forças para sair dessa vida, que mais parece um inferno”. E, no outro dia, ela criou coragem e foi reclamar com ele pelas agressões e, principalmente, pelo episódio da noite anterior. O marido pegou uma espingarda e atirou contra Giselle, mesmo ela tendo a filha ao lado. A criança, que a exemplo do irmão, hoje precisa de tratamento psicológico e toma remédio controlado, nunca se esqueceu desse terrível episódio. “Isso me marcou demais!”, relembra Giselle aos prantos.

Amedrontada, temendo por sua vida e pela vida dos filhos, ela ouvia diariamente coisas do tipo: “Você não é nada sem mim”, “Se você me largar, vai passar fome” e “Ninguém vai te dar um emprego”.

Outra terrível lembrança é de um período em que Giselle amamentava o filho e o agressor, em um momento de fúria, atirou contra ela uma penca de chaves, que atingiram o seu seio. Ela lembra com tristeza: “Saía sangue e leite junto, então fiquei um tempo sem poder dar de mamar ao meu menino”.

VOU SAIR DE CASA

Os dias se passavam e, em meio à luta contra as investidas do agressor, Giselle estava deitada, pois a depressão e os remédios para síndrome do pânico tiravam suas forças até de sair da cama. Ela pediu que o marido lhe servisse comida, e ele jogou uma vasilha de sopa quente em seu rosto. Giselle limpou o rosto, não retrucou. E, no outro dia, saiu de casa e procurou a Lei. Ela relata: “Eu tirei forças de onde não tinha, olhei para os meus filhos, lembrei que meu pequeno já tinha tentando tomar a faca da mão do pai, que ameaçava me cortar, lembrei que minha menina presenciava constantes tentativas dele de me enforcar”.

Giselle foi à Delegacia da Mulher, pediu medida protetiva, com base na Lei Maria da Penha, e foi morar na casa da mãe. É óbvio que o agressor não lhe deixou em paz, começou a persegui-la, foi até o seu serviço, depois quebrou a porta da sua casa, tentou estuprá-la, e ela fez exame médico, mesmo tão constrangida, para provar a violência que sofrera. Ela dá o seu “grito de alerta a quem passa por esse tipo de situação: “Minha grande dica às mulheres que sofrem qualquer tipo de violência é que registrem tudo, façam corpo de delito, contem seu sofrimento para profissionais especializados, como psicólogos ou psiquiatras. Para a lei, a palavra da vítima ganha mais força quando tem provas”.

VITÓRIA NA JUSTIÇA

Giselle e o agressor fizeram um acordo, perante a lei, para divisão dos bens, no processo de separação. Mas, após anos de sofrimento e humilhação, ela já não era mais a mulher que era antes de conhecê-lo, ela era um prospecto de ser humano, e só queria se ver livre dele e de toda a situação. Desesperada, Giselle assinou um acordo judicial que beneficiava o ex-companheiro na divisão de bens do casal, e a maior porcentagem ficou com o agressor. Ela conta: “Ele me disse que era isso ou nada, e naquele momento eu assinaria qualquer coisa, pois só queria voltar a viver, me ver livre de tudo aquilo, tirar meus filhos daquela situação”. Ela assinou e, 15 dias depois, o acordo foi homologado na Justiça.

Mas, após passar alguns dias, quase sem acreditar que estava realmente separada de quem a fez passar pelos piores momentos de sua vida, Giselle refrescou a cabeça, respirou fundo e começou a pensar no futuro dos filhos. “Eles estão sendo lesados”, analisou. Foi então que Giselle contratou os serviços de um escritório de advocacia, e os advogados Frederick Haendel Cunha Andrade e Dayanne Sena Pinheiro foram seus parceiros para o que Giselle chama de “uma verdadeira luta judicial, realizada no fórum e na delegacia”.

De 30 de novembro de 2021 a 2 de junho de 2023, durou a batalha judicial, em que Giselle, sob a orientação do Dr. Frederick Haendel e da Dra. Dayane Sena conseguiu laudos, reuniu provas e depoimentos que convenceram a Justiça da Comarca de Capelinha, chefiada pelo juiz Rafael Arrieiro Continentino, de que no momento do acordo de separação assinado na Justiça, ela não tinha condições de discernir, ou seja, de decidir de forma clara o que estava assinando. Pois, ela estava acuada, com medo, coagida. O juiz anulou o acordo de separação anterior, deu ganho de causa para Giselle, determinou que a partilha dos bens fosse dividida de forma igual, ou seja, 50% para cada parte, determinou o pagamento de pensão alimentícia para os dois filhos que teve com o ex-marido, e ainda, com base na Lei Maria da Penha, uma indenização por danos morais e psicológicos.
Foi uma grande vitória: quando foi chamada no escritório dos advogados, Giselle ouviu a sentença do juiz aos prantos de tanta alegria, e foi aplaudida de maneira efusiva. A felicidade invadiu o seu coração.

O AGRESSOR NÃO CONCORDOU

Mesmo já tendo sido condenado três vezes por violência contra Giselle, inclusive com sentença de cumprimento de pena em regime de albergue, o agressor não concordou com as decisões judiciais, e recorreu no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, localizado em Belo Horizonte. E agora, Giselle aguarda que o processo seja analisado na segunda instância da Justiça mineira.

SEGREDO DE JUSTIÇA

O nome do agressor e o número do processo não foram passados à reportagem do Gazeta dos Vales porque o processo está em segredo de Justiça.

É PRECISO RESISTIR

São palavras de Giselle à reportagem do Gazeta dos Vales: “O tapa dói, mas pode passar. Só que a violência psicológica é eterna. Doem as marcas que ficaram nos meus filhos. Os dois, que têm dez e doze anos, fazem tratamento psicológico, e isso me dói tanto. O mais novo tem depressão profunda e toma medicamentos fortíssimos”. Vale ressaltar que a Justiça permitiu que o pai das crianças fique com os filhos a cada 15 dias.

O destino de Giselle e dos filhos em relação à partilha dos bens do casal agora estão nas mãos da Justiça mineira. E Giselle se sente muito realizada por ter conseguido enfrentar o medo de procurar a lei. Ela declara: “Eu quero ser espelho para as mulheres que sofrem qualquer tipo de violência se encorajarem. Quero ser um modelo de luta contra a violência doméstica, contra essa covardia que é um homem agredir uma mulher”.

E Giselle prossegue: “É um erro acreditar que o agressor vai mudar, mas a vítima tem muita dificuldade para se desprender, pois a violência psicológica domina a gente, e o medo da agressão física é outro fator de dificuldade. Quando o agressor fala coisas sobre o futuro dos nossos filhos, temos pavor também. Mas, a Justiça, as leis brasileiras, tem meios de nos defender sim e de responsabilizar o agressor. Temos que revidar através da lei. Sim, é muito difícil e são constrangedoras algumas situações, mas isso não pode ser motivo para não lutar, temos que ir encontrando forças a cada dia, ter fé e determinação. E, claro, contar com bons profissionais de advocacia, formado por pessoas humanas, como aconteceu comigo, e também com a coerência e a humanidade de um juiz que me deu decisão favorável na primeira instância”.

Esta capelinhense de 42 anos, mãe de uma menina e um menino, destaca também que “ninguém merece ser escravo do outro, esquecer sua própria identidade, apanhar, ser julgada pela sociedade, esconder da família o que está passando por medo de não acordar viva”.

PAZ

E, após esse longo relato, Giselle enxugou as lágrimas, e disse, orgulhosa de si mesma: “Eu sou capaz, sou uma mulher independente, sou uma mãe amorosa, e após toda essa batalha interna e a luta judicial, eu digo com toda a sinceridade que hoje eu tenho paz”.

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