Crimes de ameaça são mais comuns em anos eleitorais em Minas Gerais

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Estado tem 13 denúncias de ameaças por dia às vésperas da eleição, e especialistas atrelam quadro ao aumento dos discursos de intolerância.

Na democracia, a divergência é um valor. Essa afirmação, que está presente nos mais diversos discursos políticos, têm deixado de ser um conceito para se tornar a base de um problema de segurança pública. É que, em anos eleitorais, os crimes de ameaça têm sido mais comuns. Dados levantados pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) de Minas Gerais a pedido da reportagem mostram que nos anos em que foram realizados processos eleitorais, gerais e municipais, entre 2014 e 2021, a média de registros de crimes de ameaça foi de 139,3 mil. O número é 1,36% maior do que os registrados nos anos sem pleito, quando a média foi de 137,4 mil casos.

Neste ano, quando o país vive uma disputa política para definição do presidente da República, dos governadores e senadores, em uma eleição polarizada, a cada hora, chegam às autoridades 13 denúncias de ameaças em Minas Gerais. De janeiro a julho, foram 67.414 boletins de ocorrência registrados nas Polícias Civil e Militar de Minas Gerais. O crime é caracterizado no artigo 147 do Código Penal e é o ato de ameaçar “por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”.  A lei determina detenção de um a seis meses ou multa.

Para o especialista em segurança pública e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Robson Sávio, as eleições funcionam como um gatilho para amplificar esse tipo de crime. “Sempre há um tensionamento em termos de disputas de visões de mundo e políticas. E o que a gente tem observado é o movimento de alguns grupos que acham que a utilização da força e da violência pode ajudar a conseguir melhores resultados”, explica o especialista. Ele revela que os dados preocupam e que ainda não representam a realidade dos fatos, devido a dificuldade de caracterizar a violência política. “A captação dos dados dos crimes de ameaça deveria ser melhor feita, mas o que percebemos é uma série de problemas. É o cidadão que não denuncia, a falta de preparo de agentes e até mesmo de um programa que possa caracterizar esse tipo de violência”, afirma.

Violência como a que sofreu o graduado em direito e, hoje, agente temporário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), Marcus Vinicius. Ele manifestou a sua intenção de voto em uma rede social. A publicação teve um tom descontraído e foi repreendida por alguns dos seus seguidores e demais usuários da rede. “Depois apanha no Mineirão e vem chorar na internet”, ameaçou um internauta. Apesar da agressão verbal, Marcus optou por não denunciar. “Eu até cogitei fazer um boletim de ocorrência. A pessoa precisa saber que ela não está impune e que a internet não é um lugar que você pode falar e fazer qualquer coisa”, disse.

Para o especialista Robson Sávio, casos como o de Marcus ocorrem com frequência e muitas das vítimas não sabem que esse comportamento configura um crime de ameaça com motivação política. “O que caracteriza essa violência é justamente quando essa ideologia política e partidária se torna um indutor das ameaças e das agressões”, explica. Sávio aponta que ela pode ocorrer fisicamente e até mesmo de forma simbólica, com textos e imagens, principalmente em redes sociais. “No momento mais atual do Brasil, temos uma maior incidência desse crime, principalmente no ambiente virtual”, conclui.

Tendência

O cenário observado em Minas Gerais acompanha uma tendência pelo país. Segundo a Safernet, ONG de proteção dos direitos humanos no ambiente digital, as denúncias de crimes que envolvem discurso de ódio na internet aumentaram 67,5% nos seis primeiros meses deste ano, em relação ao mesmo período de 2021. Ao todo, foram quase 24 mil casos registrados pela ONG. 

Entre os relatos recebidos pela Central Nacional de Denúncias da Safernet, que reúne casos de violação de dez crimes contra direitos humanos praticados com o uso da internet, a denúncia com o maior registro foi a de misoginia, que é a aversão a mulheres, com 7.096 denúncias. O levantamento seguiu com crimes de LGBTFobia (4.733) e de casos de apologia de crimes contra a vida (3.573). A ONG considera como discurso de ódio mensagens em textos e imagens que incitem a discriminação ou a violência contra indivíduos ou grupos.

Isso ocorreu com o empresário e analista de mídias Leonardo Silva. Ele foi chamado de “burro” por uma pessoa do seu ciclo de convivência quando fez uma publicação política em seu perfil, em uma rede social. “A pessoa resumiu todo o meu trabalho, que teve êxito e foi muito significativo, como algo ruim, só porque eu tinha um pensamento diferente da dela”, disse. Leonardo não foi vítima somente na web, ele também já foi intimidado e até mesmo ameaçado em alguns dos lugares em que trabalhou. “A pessoa disse que, se eu quisesse continuar empregado, eu teria que mudar a minha visão política”, relembrou.

Os episódios com o empresário e analista de mídias também configuram como violência, conforme aponta o especialista Robson Sávio. “Toda a utilização de força, seja ela física, econômica ou institucional, pode ser considerada como crime”, alerta. Para ele, são muitas as situações de repreensão e de ameaças que passam despercebidas e que as pessoas se tornam vítimas. “Quando o funcionário é impedido de usar uma peça de roupa na cor de um partido ou até mesmo é orientado a votar em determinado candidato, ele também se torna vítima”, exemplifica.

Para o especialista, os casos de violência notificados são apenas da “ponta do iceberg”. Isso porque, segundo ele, o país enfrenta problemas como a falta de informações e até de uma legislação incapaz de prevenir e repreender esse tipo de violência. “Tudo isso mina o processo democrático. E a divergência é um valor que precisa ser cultivado”.

Políticos também são vítimas da intolerância

Além de cercear a voz de eleitores, as ameaças também são usadas para tentar enfraquecer candidaturas. Os ataques contra políticos crescem em períodos eleitorais. O segundo trimestre de 2022 foi o mais violento para “representantes do povo” desde 2019, aponta o Observatório da Violência Política e Eleitoral no Brasil, produzido pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. De abril a junho deste ano, foram registrados 101 casos de violência — aumento de 26% em relação ao mesmo período do ano passado.

Para o pesquisador da área, o analista João Camargos, sócio fundador da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel), “as ameaças e o assédio moral têm esse papel de criar um clima de tensão para o candidato”. Ele atribui a escalada da violência política ao cenário de “divisão de ânimos”, com a polarização em âmbito nacional entre os candidatos.

“Essa divisão que pode levar à violência contra políticos e contra apoiadores destes políticos se chama polarização afetiva. A ideia é que a disputa saia do mundo das ideias, deixe de ser aspectos do jogo e passe para o mundo dos afetos. A discordância se torna motivo de ódio para com o outro lado. Os adversários políticos se tornam inimigos e assim por diante”, prossegue.

Vale lembrar que, durante a campanha eleitoral para a Presidência em 2018, Bolsonaro foi vítima de uma facada enquanto era carregado no ombro por apoiadores em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira. O atentado resultou em sequelas para o político, que lida com problemas de saúde no intestino desde então. Em maio daquele ano, uma caravana de apoiadores de Lula foi baleada no Paraná. Ninguém ficou ferido.

Vereadora de Belo Horizonte e candidata a deputada federal, Duda Salabert (PDT) convive com o medo e os impactos que os ataques podem causar. Ao longo da sua vida política, Duda recebeu diversas ameaças, inclusive de morte. Para a campanha que visa elegê-la como primeira parlamentar transsexual do Congresso, ela sofre barreiras impostas pelo preconceito institucionalizado na sociedade.

Para se manter segura nesse contexto, Duda tem mais gastos com a campanha. “Após as ameaças, tivemos que chamar escolta, alugar carro blindado, colete balístico. Isso acaba onerando a campanha. Praticamente 20% do valor da campanha será dedicado à segurança. (Com os ataques, eles) tiveram essa vitória: prejudicaram as campanhas. Além da questão financeira, esse cenário restringe também a atuação política da candidata nas ruas. Eu dependo do aval da segurança”, conta Duda, que assegura: “dificultar a atividade política das candidatas é um dos objetivos dos ataques”.

Outra parlamentar mineira que sofre com ataques é a deputada e candidata à reeleição Andréia de Jesus (PT). Na sexta-feira (16), ela relatou ter sofrido nova ameaça de morte. Segundo a assessoria da parlamentar, esta é a quarta intimidação desse tipo sofrido pela petista, que também sofreu ofensas racistas neste ano.

A professora Marlise Miriam de Matos Almeida, do Departamento de Ciência Política, ressalta que a escalada da violência política ocorre de maneira “genérica”, independentemente de gênero. Contudo, a especialista pontua que, como as mulheres estão “excluídas do campo político”, as ameaças contra elas são “ainda mais graves”.

Década é marcada por discursos de intolerância e agressões

Liberdade de expressão é um direito fundamental que garante a manifestação de opiniões, de ideias e de pensamentos. Ele é assegurado pelo art. 5º, IV da Constituição Federal. Por meio dele é que existe a possibilidade de exposição de crenças, ideologias, opiniões, sentimentos e emoções. No entanto, com o passar dos anos e com o avanço do acesso à internet, onde o recurso do anonimato é frequentemente utilizado, algumas pessoas têm ultrapassado os limites e violado os direitos dos outros.

Para o especialista em segurança pública e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas, Robson Sávio, muitos dos crimes com motivação política têm sido justificados com base na liberdade de expressão. Esses crimes ocorrem principalmente no ambiente virtual e são mais recorrentes nos últimos anos. “Na última década, desde aquele ano, nós acompanhamos o surgimento de grupos extremistas. Esse foi um movimento em todo o mundo. São pessoas que trabalham com o imaginário e que desejam radicalizar os discursos e as práticas eleitorais”, explica.

Em julho deste ano, o guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda foi morto a tiros enquanto comemorava sua festa de aniversário de 50 anos com temas vinculados ao PT e à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em Foz do Iguaçu, no Paraná. Ele foi assassinado pelo policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho, que invadiu a comemoração aos gritos de “Bolsonaro” e “mito”. Em setembro, o policial militar Vitor da Silva Lopes atirou na perna de um fiel dentro de uma igreja evangélica enquanto discutia com um pastor que pregava contra partidos e políticos de esquerda. A vítima foi socorrida para um hospital, por onde passou por uma cirurgia. O caso foi em Goiânia, no Centro-Oeste do país. Também neste mês, um homem, que declarou apoio ao presidente Bolsonaro, negou comida a uma mulher carente, que revelou ser eleitora do ex-presidente e candidato Lula (PT). O caso viralizou na internet, e o homem chegou a gravar um vídeo com pedido de desculpas.

Segundo Robson Sávio, episódios como esses colocam em risco a democracia. “Grupos extremistas não agem dentro do campo democrático. Eles enxergam nessas diferenças um espaço para inúmeras disputas, muitas delas com o uso da violência”, explica. Para ele, as instituições de Justiça, de Segurança e aquelas que organizam o processo eleitoral precisam discutir esses crimes e criar ações que possam prevenir e repreender quem os pratica. “A gente precisa desenvolver mecanismos para desestimular quem deseja praticar esse tipo de violência e também criar algumas formas para repreender quem faz isso”, sugere. Robson Sávio acredita que o país precisa inibir essas atitudes e desenvolver ações, muitas delas educacionais, para combater a prática. “É preciso uma cultura que não torna natural uma violência política”, conclui.

Fonte: O TEMPO

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